quarta-feira, 3 de maio de 2017


 
Quando o tempo era d' ouro...
 
(Rio Douro, da Régua ao Pocinho)
(Fotos: celine - Canon EOS1000F, analógica, 2005)
APEADA

Discutiram.
Ele: "- Ó minha linda, eu sei que tenho mau feitio, sou assim e não vou mudar".
Soou o alarme da desilusão. O comboio chiou nos carris do desgosto. Seguiu-se uma paragem brusca no sentimento.
Ela apeou-se.
Naquele instante, ela, percebeu que se perdera no sentido daquela viagem.
A meio do jantar em casa, ele gritou-lhe: "- Ou mandas arranjar a fechadura da porta ou eu não ponho mais aqui os pés!"
Ah!... Pudera, ela, ser o revisor do comboio, e intimá-lo: "- O senhor não apresenta bilhete válido para esta viagem. Queira abandonar de imediato este comboio."
No lugar de seixos roliços a ajustarem-se ao trilho sinuoso, eram pedras aguçadas que saltavam, a entravar o percurso periclitante daquela viagem.
E ela já nem percebia para que destino de vida a levava, deixar-se ir naquele comboio, aos tropeções nas pedras...
Ela: "- Só conheces a palavra 'Não'?..."
Ele: "- Sim. 'Não' é uma palavra bonita. Eu gosto da palavra 'Não'."
Quase sempre assim, grãos de areia grossa picavam-lhe a alma. E nem umas gotas de sal para a retemperarem daqueles solavancos de jornada; afinal, tão distante que viajava do mar de venturas em que pensara...
Por isso, ela apeou-se. Ali mesmo, no apeadeiro do mau feitio.
Ela continua dentro do comboio.
Mas agora vai sentada, quieta, olhando a paisagem que se vive fora daquela locomotiva do descontentamento, estranha ao que se passa no íntimo da sua carruagem.
Não sabe o que vai acontecendo do lado de dentro. Nem quer saber.
Só lhe interessa ficar ali a ver a paisagem, fora dela, a correr veloz diante dos seus olhos, do outro lado da vida, vidrada na janela daquele seu comboio-fantasma.
Por vezes, percebe o reflexo do seu rosto no vidro e desvia-se por aqueles outros trilhos que lhe sulcam o olhar vazio, que é o seu.
Só a boca parece que resfolega energia, que vive, ainda.
Entreabrindo os lábios, sopra no vidro frio um bafo quente de "aaamooo-teee"; mas o eco morre-lhe no cubículo do peito atravancado de tristeza, fedendo a solidão.
E, mesmo ali, é sempre a sua imagem que aquele reflexo lhe devolve. Só, a sua imagem.
Mas logo, logo a paisagem lá fora distrai-a.
E aquela teimosia! de ir, assim, sentada de costas voltadas para a marcha do comboio, a ver a paisagem a fugir-lhe aos olhos, para acossar-lhe a alma.
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Ele: "- Queres ir jantar a um Indiano?"
Ela foi.
Foi, porque gosta muito de caril.
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Talvez um dia, um bandido assalte o seu comboio, brandindo no ar perigosas armas de mel.
A suceder-se uma travagem súbita no seu estupor, para fazê-la saltar do assento ao contrário, e, depois, lançá-la para fora, ao encontro do sentido certo da paisagem.
 
Talvez, um dia...
 ... ainda que chova...
 ... um amor bandido...