sábado, 30 de janeiro de 2021

DE ONDE VEM A COR? (IV)

(Foto: celine)

 

"Onde a lira triste que segue a flauta repentina?

Por veredas infindáveis, onde florescem cerejeiras, num cais de salgueiros curvados.

A Senhora da Casa Leste envelhece e ninguém a ama.

O sol branco ao meio-dia, o último mês da Primavera quase a findar.


A Princesa Li-yang tem catorze anos.

Quando o dia refrescar, depois da Festa da Chuva, um encontro junto à sebe

Regressa a casa, volta-te na cama até à quinta hora.

Duas andorinhas, nos beirais, ouvem o longo suspiro."


(Li Shang-yin, Chuva na Primavera e Outros Poemas)


(Foto: celine)


"Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate"

(José Tolentino Mendonça, "A Estrada Branca" in A Noite Abre Meus Olhos)

 

sábado, 23 de janeiro de 2021

  DE ONDE VEM A COR? (III)


(Fotografia: celine)

"(...)
O azul não canta, a água morre
na mais secreta boca do teu corpo.

Aqui não brilha a terra, a luz é fria,
aqui o horizonte não respira.

Não havia vento: só medo e cobardia."

(Eugénio de Andrade, "Espadas da Melancolia" in Ostinato Rigore)

 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

(Fotos: celine)

"(...)
De ti, tão intelectual, amigo dos velhos e das crianças, dos regatos e das borboletas, do sol e dos cães, das flores e da lua, paciente e reflexivo, melancólico e amável, Marco Aurélio dos prados...
Platero, que sem dúvida compreende, olha-me fixamente com os seus grandes olhos brilhantes, de uma serena firmeza, onde o sol brilha, diminuto e refulgente, num breve e convexo firmamento negro. (...)"

(Juan Ramón Jiménez in Platero e Eu)

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

  DE ONDE VEM A COR? (II)

(Foto: celine)

"Dias pensando-se uns aos outros na sua seda estendida,
inteligentes para dentro do que há nos dias:
faíscas do ar, o ar braço a braço,
e no meio dos braços, no mais compacto
da claridade e da carne: o sangue que entra e sai por um lento
canal negro."

(Herberto Helder, "Do Mundo" in Ofício Cantante)


domingo, 10 de janeiro de 2021

 DE ONDE VEM A COR? (I)


(Foto: celine)

"            Libélula vermelha.
Tira-lhe as asas:
            um pimentão."

(Haiku japonês de Kikaku apud Herberto Helder in O Bebedor Nocturno)



quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

(Jardim da estrela - Lisboa
Foto: celine)

"(...)
No muro da minha alma há uma fresta.
por ela entra o vento e a multidão
Das vozes e dos signos.

Quando a certeza chega, o coração
Lança de si os trajes mais indignos
E entra, sorrindo, na festa."

(Ruy Cinatti, "Natal" (excerto) in Natal... Natais...)

 

NOITE DE REIS


(Jardim da Praça do Imperio - Lisboa
Fotos e edição: celine)

"(...)
Já as janeiras vieram,
Os Reis estão a chegar,
Os anos amadureceram:
Estamos para durar!

Já lá vem Melchior
Sentado no seu camelo
Cantar as loas de cor
Ao cair do caramelo.

Ó incenso, mirra e oiro,
Que cheirais e luzis tanto,
Não valeis aquele tesoiro
Do nosso Menino Santo!

Abride a porta ao pregrino,
Que bem de mum longe, à neve,
De ver nascer o Menino
Nas palhinhas do preseve
(...)"

(Vitorino Nemésio, "Janeiras" (excerto), in Natal... Natais...)

 

2020 em revista...


(Foto: celine)

"por breves instantes
o meu amigo foi deus
num ano para esquecer"

(Matsuo Bashô, O Eremita Viajante)

 

Sob o Signo do Branco VII


(Foto: celine)

"O sangue matinal das framboesas
escolhe a brancura do linho para amar
(...)"

(Eugénio de Andrade, "Natureza-Morta com Frutos in Ostinato Rigore)

 

Sob o Signo do Branco VI


(Mata do Camarido - Caminha, Viana do Castelo
Foto: celine)

"(...)
Uma forma imóvel, aguda e vertiginosa e ténue
e a claridade das arestas percutidas,
uma habitação modelada aereamente
e, no entanto, sem sair da terra,
uma terra branca, uma terra de ar.
Terrear."

(António Ramos Rosa, Antologia Poética)

 


Sob o Signo do Branco V

(Foto: celine)

"(...)
Sem palavras, uma palavra o anima
ao fim da primeira silenciosa descida.
Depois a brancura rodeia-o como uma capa
de uma bailarina.
Mas ele percorre um corpo
e de todos os sulcos
(branco no branco)
outro corpo nupcial descreve.
(...)"

(António Ramos Rosa, "O Esquiador" (excerto) in Antologia Poética)

 

(Foto: celine)

"(...) O tom de uma cena que representamos em nossas vidas é largamente determinado pela luz projectada do alto de nós. Enquanto electricista-mor, o céu fornece uma infindável variedade de efeitos de iluminação às nossas acções, ajudando ate a moldar as emoções que as acompanham. Há o vagaroso obscurecimento do crepúsculo para a troca de intimidades, a luz diluviana de uma manhã primaveril para sentirmos irrazoável deleite, o negrume da noite quando nenhuma luz cai do céu e nos tornamos vítimas das nossas próprias fantasias, a luz cinzenta, indiferente do céu de verão, um incitamento à indolência. Como podemos nós dizer até que ponto foram as nossas acções determinadas pela luz que nos envolvia enquanto as executávamos? Mas esses efeitos indirectos empalidecem ao lado do insuperável espectáculo do próprio céu enquanto este os vai produzindo. Em geral concorda-se que as visões mais surpreendentes e grandiosas que um ser humano consegue imaginar têm lugar no céu. É uma mera questão de olhá-lo; o céu há-de cumprir.
(...) Um pesadelo recorrente: a atmosfera da Terra escapou para o espaço, e nós vemos que o céu se tornou permanentemente negro. (...)"

(Paul Bowles, Viagens)   

 

(Foto: celine)

"1 
No espaço de um relâmpago
os olhos reflectem os navios

O silêncio brilha acariciado.

O silêncio é de todos os rumores 
o mais próximo da nascente.

Só água era, e sem memória.

Claridade sem repouso, ó claridade,
aguda nos juncos, nas pedras rasa.

6
No ardor dos cardos
que o vento faz casa.

Da pedra ao sal, do sal à espuma,
amo a pobreza e a brancura."

(Eugénio de Andrade, "As nascentes da ternura" in Ostinato Rigore)