segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

(Monte de Santa Tecla, Galiza - vista da praia do Moledo, Caminha-Portugal
Foto: celine)



De que são feitas as memórias?
Passeio-me ao longo da praia, numa tarde farrusca.
Olho mais além, para o imenso ermo galego, e torno à velha questão:
quem sou eu?...

Desde que sou presente,
já passou meio século
neste lado do universo.

Depois de tantos rodados,
para norte e de volta para sul,
na prazerosa N13, agora veloz A1!

Olho para trás,
nessa outra estrada da vida…
o que aconteceu, desde a partida?... 
Passeio-me ao longo da praia, descobrindo, na branca espuma, o desfio da água turva das memórias. 
Memórias… 
… de enrolar-me pequenina no colo do pai,
a sentir a voz sumir-se-lhe
sob o peso das pálpebras teimosas…
…das castanhas a estalarem nas brasas
do alambique de aguardente,
saltitantes nas mãozinhas de petiza…
… do equilibrismo do fim da infância,
balouçando na escada de madeira podre
a arrancar bagos de moscatel e de alvarinho…
… dos banhos a espertar a adolescência,
na cascata entonada do tanque,
na hora do sol dourar a parreira…
…de me agachar, desde sempre,
sobre a terra húmida,
a sentir-lhe o cheiro da chuva…
… do fumeiro nas narinas,
a crepitar nas queimadas
das manhãs brumosas de invernia…
… do costurar do vento,
nas agulhas afiadas dos pinheiros,
o véu da nortada a desvelar a chuva…
…de mergulhar a alma
na água ferrosa do pote negro,
vertida na alva selha dos banhos…
... das francas gargalhadas maternas,
amassando a alegria de bolos e merendas,
a envolver-nos no coração de mel...
… das rosas abertas,
a perlarem de orvalho
o acordar de cristalinas manhãs…
… da primeira (des)ilusão de amor,
assobiada nos bicos dos pés,
sob uma cepa de vinho verde…
... da fresca alma minhota da mãe
chacoteando as compras matinadas,
a aliviar a carga nas costas galegas...
… do pinheirinho de Natal,
aos ombros do pai, caminhando ao lado
o arrastar do machado na volta dos pinhais… 
Passeio-me ao longo da praia;
dos salpicos salinos das ondas
outras pérolas salgadas
saltam deste rosário de contas.
De que são feitas as memórias, afinal? 
Talvez de longos passeios à beira mar…



sábado, 20 de janeiro de 2018

(Foto: ANTONINO DIAS
Autor do livro de fotografia "Costa Vicentina e Outros Lugares")


Duas cabeças coroadas,
à porta do inverno,
discutiam animadas:

"Quando a primavera chegar,
saias de pétalas iremos tecer!
Aspergiremos no ar
perfumes de entontecer!"


terça-feira, 9 de janeiro de 2018

(Bairros de Alfama - Lisboa
Foto: celine)

a palavra

que não é apenas
uma arma de arremesso
na batalha
de dias ingloriosos
um imperativo categórico
de vozes
pretensamente influentes

a palavra

que é também
uma flor
para corações solitários
uma clareira
para almas angustiadas

a palavra

que é um alfabeto de sentidos
do engano
da esperança
do desespero
do bem-querente
da raiva
do amor

a palavra

que é
maldita
tão prenhe
bendita
tão estéril

a palavra

equipa
de letras
diversiva