(Maha Gandahayon Monastery, Amarapura - Birmânia)
(Foto: celine)
Na estrada para Mandalay
«Come you back to Mandalay,
Where the old Flotilla lay:
Can't you 'ear their paddles chunkin' from Rangoon to Mandalay?
Where the old Flotilla lay:
Can't you 'ear their paddles chunkin' from Rangoon to Mandalay?
On the road to Mandalay, (...)
(Rudyard Kipling, Mandalay)
Decorria o ano da graça de 2002. E eu era ainda uma jovem mulher na idade dos trinta anos.
Hoje designa-se Myanmar e a capital passou a ter o nome Yangon, antes Rangum, que, na etimologia desse topónimo, significa “fugir dos inimigos”.
Mas eu sou uma viajante nostálgica e inclino-me sempre a afeiçoar-me às antigas toponímias, se estas soarem mais românticas. Para mim é, e será sempre, a derivação do sânscrito terra da divindade (Brahma)... Birmânia.
Ainda mal raiava o dia em Yangon, já eu me enfiava num automóvel gasto, de que não recordo a marca, com um motorista local, rumo à bela Mandalay, a segunda maior cidade e considerada a capital cultural da Birmânia. Seguiríamos pela via Ah Myan Lan - cerca de 600 quilómetros de estrada.
Naquela época, era uma estrada com troços de terra batida, marcados com manchas de asfalto, que, nalguns pontos, forçavam o automóvel a circular ao jeito de slalom, para contornar pequenas lombas, pedras de apreciável dimensão, poças formadas pelas águas das últimas chuvas…
Reparei que na grelha de ventilação, do lado esquerdo do condutor, dos espaços da grelha, espetavam-se uns canudinhos semelhantes a cigarros finos.
Perguntei ao motorista do que se tratava. Respondeu-me que eram notas kyat, unidade monetária da Birmânia.
Interroguei para que serviam as notas distribuídas pela grelha. Elucidou-me que serviam para pagar as portagens daquela estrada.
Atónita, olhei para ele sem compreender a justificação para uma portagem nuns caminhos pedregosos, de terra batida com pedaços de asfalto inacabado. O motorista sossegou-me dizendo que mais à frente na estrada eu iria perceber.
Chegara o momento de fazermos uma paragem técnica - como vem soando na gíria turística.
Ali mesmo, à beira da estrada, surgira uma casinhota de madeira com um alpendre de esplanada, onde se vendiam víveres asiáticos, refrigerantes ocidentais e não se oferecia qualquer língua europeia.
Abeirei-me do balcãozito e esforcei-me para que o rapaz, a atender do outro lado, me indicasse onde é que eu poderia… enfim, aliviar-me.
O rapaz acompanhou-me às traseiras do improvisado bar e apontou-me um metro quadrado de quatro tábuas de madeira ao alto, encimadas por um pedaço de folha de zinco.
Compreendi e entrei.
Lá dentro, só a luz do dia que se infiltrava pelas fendas da madeira permitiu vislumbrar um rudimento de latrina turca - um simples buraco fundo escavado no chão de terra.
Agachei-me e cumpri o meu objectivo.
Regressando à traquitana, pensei que saíra da Europa, via Yangom, a “fugir da civilização”…
No serpentear da estrada, comecei a ver, aqui e acolá, grupos de dois, três homens enfezados, vestidos com roupas gastas e calçados com galochas, empunhando pás e enxadas.
À vista do automóvel, erguiam o corpo e apoiavam-se nas pás ou nas enxadas.
Ao aproximarmo-nos, o motorista que me conduzia baixou o vidro do seu lado, tirou da grelha de ventilação alguns dos tais rolinhos de nota kyat e entregou-os a um daqueles homens. A cena repetiu-se mais duas ou três vezes, ao longo de parte do percurso.
As portagens!
Inquiri, então, o motorista sobre a razão daqueles pagamentos, não ousando, contudo, o confronto do mau estado da estrada, com receio de ofensa. Afinal, eu era apenas uma turista que se ausentara, por alguns instantes, do confortável mundo ocidental.
Explicou-me que eram homens como aqueles, habitantes das povoações circundantes, quem ia arranjando, como podiam e com boa vontade, os troços da estrada.
E garantiam, ainda, alguma segurança na circulação dos automóveis de turismo contra eventuais atacantes. As pás e as enxadas podiam, muito bem, cumprir outras tarefas.
O dinheiro auxiliava-os a comprar materiais e matéria-prima com que produzir uma espécie de asfalto que, a pouco e pouco, lá ia cobrindo a terra batida do caminho. E ainda sobrava algum dinheiro para se alimentarem, a si e às suas famílias.
Novamente a circular, olhei para trás, e fiquei a ver afastarem-se, pelo vidro traseiro do automóvel, os enfezados homens que voltavam a afagar languidamente a terra com as suas enxadas e as suas pás.
Esta era uma Birmânia recalcada sob uma ditadura militar; uma pérola asiática, ainda por polir, encarcerada numa concha de pobreza política, económica e cultural.
Ao fim de umas longas oito horas, e muitos solavancos, chegámos a Mandalay.
Um nome que, pronunciado com suavidade, toca-nos o ouvido numa melodia doce, como o som de um incenso* a perfumar o espírito do viajante...
Em Amarapura, município de Mandalay, logo pela manhã nimbada de bruma, como o sabem ser as manhãs asiáticas, jovens budistas esvoaçavam nas suas túnicas cor de açafrão, segurando entre as suas mãos uns pequenos caldeirões onde recolhiam doações de comida, ofertas das pobres gentes que por ali habitavam.
Ao cruzarem com uma mulher, desviavam-se delicadamente, mas determinados. Nós, as mulheres, não podíamos tocar-lhes, nem no viés da bainha das suas túnicas, pois, os monges sentir-se-iam conspurcados.
No Maha Gandahayon Monastery, num final de manhã, um jovem budista, enrolado numa túnica cor de açafrão e num longhi vermelho-sangue, acocorado, rapava o cabelo a um rapazinho, noviço no mosteiro. Um ritual repetido para todos os meninos que ingressavam nos mosteiros budistas.
Para os meninos birmaneses, a entrada e permanência, até aos dez anos de idade, num daqueles mosteiros, era a única oportunidade de alcançarem uma educação intelectual e espiritual, poupando aos seus pais os ónus da frequência de uma escola laica. Quando atingissem aquela idade teriam de escolher se desejavam prosseguir a vida monástica ou, antes, regressar à vida secular. Mas se saíssem para a existência mundana, levariam na frugalidade da sua bagagem, a riqueza do conhecimento de saberem ler e escrever.
No final do dia, em Amarapura, contemplando a longa ponte de madeira U Bein, atravessada sobre o plácido lago Taungthaman, encontrando-me tão deslocada do conforto da minha casa lisboeta e tão distante da estabilidade da civilização ocidental, pensei,
a Birmânia é um bom lugar para perder-se a alma e não desejar encontrá-la…
... tão cedo!
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Recordei estes momentos da minha viagem à Birmânia ao ler, agora, em Annemarie Schwarzenbach reflexões acerca da efabulação ocidental sobre a segurança e estabilidade na existência humana, que alguns de nós ensaia quando viaja.
Cedo-lhe, pois, a voz,
«’ A nossa vida parece-se com uma viagem…’, e mais do que uma aventura e uma excursão em regiões inabituais, a viagem parece-me ser um símbolo da nossa existência: instalados numa cidade, cidadãos de um país, pertencendo a uma classe ou a um meio social, membros de uma família, ligados aos deveres de uma profissão, aos hábitos de uma ‘vida quotidiana’ tecida de todos estes elementos, sentimo-nos, muitas vezes, demasiado seguros de nós; consideramos que a nossa casa foi construída para a eternidade, somos tentados a crer numa estabilidade que, para uns, torna problemático o envelhecer e, para outros, dá a qualquer mudança exterior as aparências de uma catástrofe. Esquecemos que se trata de um processo em curso, que a terra está em movimento perpétuo e que estamos implicados no fluxo e no refluxo dos oceanos, nos tremores de terra e em tudo o que se passa muito longe do meio imediato que nos rodeia, visível e tangível: mendigos ou reis, atores todos da mesma grande comédia. Esquecemo-lo, para por assim dizer preservarmos a paz da nossa alma, construída ela própria sobre areias movediças.»
(annemarie schwarzenbach, Todos os caminhos estão abertos - Com Ella Maillart no Afeganistão (1939-1940), colecção Viagens, Editora Relógio de Água, Outubro de 2016, pp.37-38).
* Ouvir o Incenso, W. B. Yeats.