domingo, 29 de janeiro de 2017


(Maha Gandahayon Monastery, Amarapura - Birmânia)
(Foto: celine)


Na estrada para Mandalay
  «Come you back to Mandalay,
                    Where the old Flotilla lay:
                    Can't you 'ear their paddles chunkin' from Rangoon to Mandalay?
On the road to Mandalay, (...)
(Rudyard Kipling, Mandalay)
 Decorria o ano da graça de 2002. E eu era ainda uma jovem mulher na idade dos trinta anos.
Hoje designa-se Myanmar e a capital passou a ter o nome Yangon, antes Rangum, que, na etimologia desse topónimo, significa “fugir dos inimigos”.
Mas eu sou uma viajante nostálgica e inclino-me sempre a afeiçoar-me às antigas toponímias, se estas soarem mais românticas. Para mim é, e será sempre, a derivação do sânscrito terra da divindade (Brahma)... Birmânia.
Ainda mal raiava o dia em Yangon, já eu me enfiava num automóvel gasto, de que não recordo a marca, com um motorista local, rumo à bela Mandalay, a segunda maior cidade e considerada a capital cultural da Birmânia. Seguiríamos pela via Ah Myan Lan - cerca de 600 quilómetros de estrada.
Naquela época, era uma estrada com troços de terra batida, marcados com manchas de asfalto, que, nalguns pontos, forçavam o automóvel a circular ao jeito de slalom, para contornar pequenas lombas, pedras de apreciável dimensão, poças formadas pelas águas das últimas chuvas…
Reparei que na grelha de ventilação, do lado esquerdo do condutor, dos espaços da grelha, espetavam-se uns canudinhos semelhantes a cigarros finos.
Perguntei ao motorista do que se tratava. Respondeu-me que eram notas kyat, unidade monetária da Birmânia.
Interroguei para que serviam as notas distribuídas pela grelha. Elucidou-me que serviam para pagar as portagens daquela estrada.
Atónita, olhei para ele sem compreender a justificação para uma portagem nuns caminhos pedregosos, de terra batida com pedaços de asfalto inacabado. O motorista sossegou-me dizendo que mais à frente na estrada eu iria perceber.
Chegara o momento de fazermos uma paragem técnica - como vem soando na gíria turística.
Ali mesmo, à beira da estrada, surgira uma casinhota de madeira com um alpendre de esplanada, onde se vendiam víveres asiáticos, refrigerantes ocidentais e não se oferecia qualquer língua europeia.
Abeirei-me do balcãozito e esforcei-me para que o rapaz, a atender do outro lado, me indicasse onde é que eu poderia… enfim, aliviar-me.
O rapaz acompanhou-me às traseiras do improvisado bar e apontou-me um metro quadrado de quatro tábuas de madeira ao alto, encimadas por um pedaço de folha de zinco.
Compreendi e entrei.
Lá dentro, só a luz do dia que se infiltrava pelas fendas da madeira permitiu vislumbrar um rudimento de latrina turca - um simples buraco fundo escavado no chão de terra.
Agachei-me e cumpri o meu objectivo.
Regressando à traquitana, pensei que saíra da Europa, via Yangom, a “fugir da civilização”
No serpentear da estrada, comecei a ver, aqui e acolá, grupos de dois, três homens enfezados, vestidos com roupas gastas e calçados com galochas, empunhando pás e enxadas.
À vista do automóvel, erguiam o corpo e apoiavam-se nas pás ou nas enxadas.
Ao aproximarmo-nos, o motorista que me conduzia baixou o vidro do seu lado, tirou da grelha de ventilação alguns dos tais rolinhos de nota kyat e entregou-os a um daqueles homens. A cena repetiu-se mais duas ou três vezes, ao longo de parte do percurso.
As portagens!
Inquiri, então, o motorista sobre a razão daqueles pagamentos, não ousando, contudo, o confronto do mau estado da estrada, com receio de ofensa. Afinal, eu era apenas uma turista que se ausentara, por alguns instantes, do confortável mundo ocidental.
Explicou-me que eram homens como aqueles, habitantes das povoações circundantes, quem ia arranjando, como podiam e com boa vontade, os troços da estrada.
E garantiam, ainda, alguma segurança na circulação dos automóveis de turismo contra eventuais atacantes. As pás e as enxadas podiam, muito bem, cumprir outras tarefas.
O dinheiro auxiliava-os a comprar materiais e matéria-prima com que produzir uma espécie de asfalto que, a pouco e pouco, lá ia cobrindo a terra batida do caminho. E ainda sobrava algum dinheiro para se alimentarem, a si e às suas famílias.
Novamente a circular, olhei para trás, e fiquei a ver afastarem-se, pelo vidro traseiro do automóvel, os enfezados homens que voltavam a afagar languidamente a terra com as suas enxadas e as suas pás.
Esta era uma Birmânia recalcada sob uma ditadura militar; uma pérola asiática, ainda por polir, encarcerada numa concha de pobreza política, económica e cultural.
Ao fim de umas longas oito horas, e muitos solavancos, chegámos a Mandalay.
Um nome que, pronunciado com suavidade, toca-nos o ouvido numa melodia doce,  como o som de um incenso* a perfumar o espírito do viajante...
 Em Amarapura, município de Mandalay, logo pela manhã nimbada de bruma, como o sabem ser as manhãs asiáticas, jovens budistas esvoaçavam nas suas túnicas cor de açafrão, segurando entre as suas mãos uns pequenos caldeirões onde recolhiam doações de comida, ofertas das pobres gentes que por ali habitavam.
Ao cruzarem com uma mulher, desviavam-se delicadamente, mas determinados. Nós, as mulheres, não podíamos tocar-lhes, nem no viés da bainha das suas túnicas, pois, os monges sentir-se-iam conspurcados.
No Maha Gandahayon Monastery, num final de manhã, um jovem budista, enrolado numa túnica cor de açafrão e num longhi vermelho-sangue, acocorado, rapava o cabelo a um rapazinho, noviço no mosteiro. Um ritual repetido para todos os meninos que ingressavam nos mosteiros budistas.
Para os meninos birmaneses, a entrada e permanência, até aos dez anos de idade, num daqueles mosteiros, era a única oportunidade de alcançarem uma educação intelectual e espiritual, poupando aos seus pais os ónus da frequência de uma escola laica. Quando atingissem aquela idade teriam de escolher se desejavam prosseguir a vida monástica ou, antes, regressar à vida secular. Mas se saíssem para a existência mundana, levariam na frugalidade da sua bagagem, a riqueza do conhecimento de saberem ler e escrever.
No final do dia, em Amarapura, contemplando a longa ponte de madeira U Bein, atravessada sobre o plácido lago Taungthaman, encontrando-me tão deslocada do conforto da minha casa lisboeta e tão distante da estabilidade da civilização ocidental, pensei, 
a Birmânia é um bom lugar para perder-se a alma e não desejar encontrá-la
 ... tão cedo!
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Recordei estes momentos da minha viagem à Birmânia ao ler, agora, em Annemarie Schwarzenbach reflexões acerca da efabulação ocidental sobre a segurança e estabilidade na existência humana, que alguns de nós ensaia quando viaja.
Cedo-lhe, pois, a voz,
«’ A nossa vida parece-se com uma viagem…’, e mais do que uma aventura e uma excursão em regiões inabituais, a viagem parece-me ser um símbolo da nossa existência: instalados numa cidade, cidadãos de um país, pertencendo a uma classe ou a um meio social, membros de uma família, ligados aos deveres de uma profissão, aos hábitos de uma ‘vida quotidiana’ tecida de todos estes elementos, sentimo-nos, muitas vezes, demasiado seguros de nós; consideramos que a nossa casa foi construída para a eternidade, somos tentados a crer numa estabilidade que, para uns, torna problemático o envelhecer e, para outros, dá a qualquer mudança exterior as aparências de uma catástrofe. Esquecemos que se trata de um processo em curso, que a terra está em movimento perpétuo e que estamos implicados no fluxo e no refluxo dos oceanos, nos tremores de terra e em tudo o que se passa muito longe do meio imediato que nos rodeia, visível e tangível: mendigos ou reis, atores todos da mesma grande comédia. Esquecemo-lo, para por assim dizer preservarmos a paz da nossa alma, construída ela própria sobre areias movediças.»
(annemarie schwarzenbach, Todos os caminhos estão abertos - Com Ella Maillart no Afeganistão (1939-1940), colecção Viagens, Editora Relógio de Água, Outubro de 2016, pp.37-38). 
* Ouvir o Incenso, W. B. Yeats.



(Islas Cíes, Galiza - Espanha)
(Foto: celine)
Pergunta - O que vês?
Resposta - Uma pedra pesando sobre a água serena.
 
Pergunta - O que sentes?
Resposta - Que força sábia tranquiliza a água, apesar da rudeza da pedra?

domingo, 22 de janeiro de 2017












Desvio do golpe
(Foto: celine)


MANIFESTO DA TRISTEZA PELA CRIATIVIDADE

«É a única coisa que faz sentido,
amar alguém seja como for.»
(resposta da Noiva (Monica Belluci) a Kosta
(Emir Kusturica), que lhe perguntara porque
se esforçava ela tanto por ele - Via Láctea, de
Emir Kusturica)



Depois de prestesmente despejada das entranhas maternais, venho umbigando nos meus duplos seres e sentidos nesta encruzilhada da existência.
Mas o que é "existência", mercadoria posta à venda na banca das realizações humanas como bem de apreciável valor?...
Que propósitos são os atributos dessa existência - desde o vómito que fui - e que valham o peso de um nobre metal, acima da cotação do elemento químico que me insufla os pulmões?...
E eu que fui uma filha tão desejada! Um tormento de cuidados para que eu nascesse, como se encarregue viesse de uma missão imperiosa e inalienável!
Nasci. Depois de uma noite a fazer tambor do ventre de minha mãe, nasci ansiosa.
Tão ansiosa vinha que nem pedi licença; simplesmente escorreguei pelas pernas quentes de minha mãe.

Paz. Tranquilidade. Sexo.

Não sei em que notas musicais se toca a melodia harmoniosa de paz e sexo.
 
Sexo. Identidade. Sexo. Identidade.
 
Uma perturbação - com nalgadas na moral - hoje tão longínqua que confunde-se com a memória do EU, e que oculta-me o sentido do SER.

(quem sou eu? o que faço aqui?)

Viajar. Respirar. Compreender.

Viagens. O (re)encontro do EU em culturas diametralmente diferentes, em lugares intemporais, com gentes impensáveis...
Regresso à minha raiz, com um olhar estrangeiro para perceber a essência do SER - a essência do MEU ser.
Mas o que é "essência", perfume que orienta as inclinações da mente, do espírito, na brisa dos dias, no vento dos anos?

(mas quem sou eu?... mas o que faço aqui?...)

Eu não fodo. Bamboleio o corpo na vertigem do desejo. E é esse o meu crime de lesa dignidade.
Essa (outra) síndroma vertiginosa alimenta-me e mata-me - uma viúva negra do amor...

(e são já tantas as reticências!...)

Lembras-te, amor?
Vieste excitadamente pressuroso, num final de tarde, num final de Setembro. Entraste em mim como um ferro em brasa e dilataste-me a essência, no streap-tease da minha alma, e o meu corpo, em compaixão pela alma, libertou-me da conspiração de umas férias malditas.
Invadiu-me uma leveza, tão sustentável, que eclipsou o tempo e o lugar do modo como nos encontrávamos. Só se confessaram o tempo e o lugar do triângulo minado pelos nossos enganos.
E agora onde estás tu, amor?
Por que outras geometrias minadas te (a)traíste, amor?
Porque é que não vens, amor?
O prazer foi o leitmotiv de cada minuto, no corpo a corpo... mas a compaixão insultou o desejo.

Vingança. Vingança. Vingança.

De repente, o mar (origem da vida!?)...
... não sei porquê... uma dulcíssima brisa da terra para o mar... uma imensidão de sentidos inundando-me, pelos olhos adentro... uma vontade de abrir o corpo às ondas, sorver-lhes o sal...
Ó mar azul e profundo,
salga-me, salga-me a alma,
que nada se iguala no mundo
às tuas águas que acalmam!
Mas o mar que seduz é o mar que mata.

Bondade. Cólera. Mito de Poseidon.

E resta um corpo exangue, molhado, vazio pela abstinência de intimidade, mas lúcido na catarse do desengano.

(mas quem realmente sou eu? o que realmente faço aqui?)

Uma cosmologia selvagem, que atrai o corpo para o abismo da alma sombria, e que, de tempos a tempos, hipnotiza inexoravelmente numa espiral de ilusões.

Prazer. Violência. Dor.

É este o algoritmo constante na equação catatónica da minha vida.
Abeira-te da janela da tua mirada.
Encavalita nessa tua penca egocêntrica o óculo da lucidez.
Olha... o que vês?
Uns Áfricos resilientes, atemorizadamente soprados à bolina para sepultarem-se em sonhos mediterrânicos...
A Levante, desmoronam-se lugares a golfar de artérias artilhadas de cadáveres da sobrevivência...
Os Jardins das Hespérides convulsionando sobre os passeios públicos, aterrorizados restos de existências...
Um despótico poder errando pelos escuros e sinuosos corredores de um funcionalismo inconsequente e sinecurista...
Umas caricaturas grotescas de paladinos da democracia ululando jocosamente pelas divisões da casa de Témis...

Desamor. Desamor. Desamor.

Nesta nova (des)ordem mundial há espaço para a apologia das palavras (ah! as bem ditas palavras!): da palavra do ano, da palavra-chave, da palavra-engano,

 
políticas acidentadas
 
 
 
 
vesúvio da razão
 
corrupção do vigor
 
 
 
 
cinismo das paixões
 
apostasia do bom senso
 
 desastre do amor
 
 
 
 
 
arcaísmo da cultura
 
 
 
banalização do desejo
interesses armadilhados
 
 
 
 
leis disfuncionais
 
polissemia do corpo
 
 
 
 
demissão do pensamento
 
tecnologia do sacrifício
 
 
 
 
 
elogio do absurdo
 
 
cataclismo da paz
 
colapso da humanidade
 







O corpo troça desta mundanalidade - que excita-se na carícia masturbadora do materialismo espojado no chienlit da economia de mercado; que fornica implacavelmente no hardcore do terrorismo e da guerra; que geme no báratro do desastre do amor perpetrado pelo cinismo das paixões.

Perdição. Medo. Desespero.

Na mise en scéne desta indigência de felicidade, o sexo redime-se no altar em que é sacrificada a polissemia do corpo.
O corpo, essa carcaça de deleite, liberta da alma um riso de Mefistófeles. E a alma, assim expurgada pelo abandono do corpo, apostata na remissão da tristeza, e vingam-se ambos da mundanalidade abjecta.

Desvio do golpe. Desamor. Desvio do golpe. Desamor.

Se não consegues evitar, corrigir, um erro, recria-o, reinventa-o em algo ainda apreciável; mas apreciável para o Outro, para além de ti.

(quem pretenderei eu ser?... o que pretenderei aqui fazer?...)

Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Silêncio, sim...

Não!
Ouço uma voz... em cantilena psicadélica...

sorrisos
bonitos,
beijos
felizes
sorrisos
bonitos,
beijos
felizes
sorrisos
bonitos,
beijos
felizes



(raios te partam, tristeza!)