domingo, 22 de janeiro de 2017












Desvio do golpe
(Foto: celine)


MANIFESTO DA TRISTEZA PELA CRIATIVIDADE

«É a única coisa que faz sentido,
amar alguém seja como for.»
(resposta da Noiva (Monica Belluci) a Kosta
(Emir Kusturica), que lhe perguntara porque
se esforçava ela tanto por ele - Via Láctea, de
Emir Kusturica)



Depois de prestesmente despejada das entranhas maternais, venho umbigando nos meus duplos seres e sentidos nesta encruzilhada da existência.
Mas o que é "existência", mercadoria posta à venda na banca das realizações humanas como bem de apreciável valor?...
Que propósitos são os atributos dessa existência - desde o vómito que fui - e que valham o peso de um nobre metal, acima da cotação do elemento químico que me insufla os pulmões?...
E eu que fui uma filha tão desejada! Um tormento de cuidados para que eu nascesse, como se encarregue viesse de uma missão imperiosa e inalienável!
Nasci. Depois de uma noite a fazer tambor do ventre de minha mãe, nasci ansiosa.
Tão ansiosa vinha que nem pedi licença; simplesmente escorreguei pelas pernas quentes de minha mãe.

Paz. Tranquilidade. Sexo.

Não sei em que notas musicais se toca a melodia harmoniosa de paz e sexo.
 
Sexo. Identidade. Sexo. Identidade.
 
Uma perturbação - com nalgadas na moral - hoje tão longínqua que confunde-se com a memória do EU, e que oculta-me o sentido do SER.

(quem sou eu? o que faço aqui?)

Viajar. Respirar. Compreender.

Viagens. O (re)encontro do EU em culturas diametralmente diferentes, em lugares intemporais, com gentes impensáveis...
Regresso à minha raiz, com um olhar estrangeiro para perceber a essência do SER - a essência do MEU ser.
Mas o que é "essência", perfume que orienta as inclinações da mente, do espírito, na brisa dos dias, no vento dos anos?

(mas quem sou eu?... mas o que faço aqui?...)

Eu não fodo. Bamboleio o corpo na vertigem do desejo. E é esse o meu crime de lesa dignidade.
Essa (outra) síndroma vertiginosa alimenta-me e mata-me - uma viúva negra do amor...

(e são já tantas as reticências!...)

Lembras-te, amor?
Vieste excitadamente pressuroso, num final de tarde, num final de Setembro. Entraste em mim como um ferro em brasa e dilataste-me a essência, no streap-tease da minha alma, e o meu corpo, em compaixão pela alma, libertou-me da conspiração de umas férias malditas.
Invadiu-me uma leveza, tão sustentável, que eclipsou o tempo e o lugar do modo como nos encontrávamos. Só se confessaram o tempo e o lugar do triângulo minado pelos nossos enganos.
E agora onde estás tu, amor?
Por que outras geometrias minadas te (a)traíste, amor?
Porque é que não vens, amor?
O prazer foi o leitmotiv de cada minuto, no corpo a corpo... mas a compaixão insultou o desejo.

Vingança. Vingança. Vingança.

De repente, o mar (origem da vida!?)...
... não sei porquê... uma dulcíssima brisa da terra para o mar... uma imensidão de sentidos inundando-me, pelos olhos adentro... uma vontade de abrir o corpo às ondas, sorver-lhes o sal...
Ó mar azul e profundo,
salga-me, salga-me a alma,
que nada se iguala no mundo
às tuas águas que acalmam!
Mas o mar que seduz é o mar que mata.

Bondade. Cólera. Mito de Poseidon.

E resta um corpo exangue, molhado, vazio pela abstinência de intimidade, mas lúcido na catarse do desengano.

(mas quem realmente sou eu? o que realmente faço aqui?)

Uma cosmologia selvagem, que atrai o corpo para o abismo da alma sombria, e que, de tempos a tempos, hipnotiza inexoravelmente numa espiral de ilusões.

Prazer. Violência. Dor.

É este o algoritmo constante na equação catatónica da minha vida.
Abeira-te da janela da tua mirada.
Encavalita nessa tua penca egocêntrica o óculo da lucidez.
Olha... o que vês?
Uns Áfricos resilientes, atemorizadamente soprados à bolina para sepultarem-se em sonhos mediterrânicos...
A Levante, desmoronam-se lugares a golfar de artérias artilhadas de cadáveres da sobrevivência...
Os Jardins das Hespérides convulsionando sobre os passeios públicos, aterrorizados restos de existências...
Um despótico poder errando pelos escuros e sinuosos corredores de um funcionalismo inconsequente e sinecurista...
Umas caricaturas grotescas de paladinos da democracia ululando jocosamente pelas divisões da casa de Témis...

Desamor. Desamor. Desamor.

Nesta nova (des)ordem mundial há espaço para a apologia das palavras (ah! as bem ditas palavras!): da palavra do ano, da palavra-chave, da palavra-engano,

 
políticas acidentadas
 
 
 
 
vesúvio da razão
 
corrupção do vigor
 
 
 
 
cinismo das paixões
 
apostasia do bom senso
 
 desastre do amor
 
 
 
 
 
arcaísmo da cultura
 
 
 
banalização do desejo
interesses armadilhados
 
 
 
 
leis disfuncionais
 
polissemia do corpo
 
 
 
 
demissão do pensamento
 
tecnologia do sacrifício
 
 
 
 
 
elogio do absurdo
 
 
cataclismo da paz
 
colapso da humanidade
 







O corpo troça desta mundanalidade - que excita-se na carícia masturbadora do materialismo espojado no chienlit da economia de mercado; que fornica implacavelmente no hardcore do terrorismo e da guerra; que geme no báratro do desastre do amor perpetrado pelo cinismo das paixões.

Perdição. Medo. Desespero.

Na mise en scéne desta indigência de felicidade, o sexo redime-se no altar em que é sacrificada a polissemia do corpo.
O corpo, essa carcaça de deleite, liberta da alma um riso de Mefistófeles. E a alma, assim expurgada pelo abandono do corpo, apostata na remissão da tristeza, e vingam-se ambos da mundanalidade abjecta.

Desvio do golpe. Desamor. Desvio do golpe. Desamor.

Se não consegues evitar, corrigir, um erro, recria-o, reinventa-o em algo ainda apreciável; mas apreciável para o Outro, para além de ti.

(quem pretenderei eu ser?... o que pretenderei aqui fazer?...)

Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Silêncio, sim...

Não!
Ouço uma voz... em cantilena psicadélica...

sorrisos
bonitos,
beijos
felizes
sorrisos
bonitos,
beijos
felizes
sorrisos
bonitos,
beijos
felizes



(raios te partam, tristeza!)










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