quinta-feira, 3 de dezembro de 2020


Sob o Signo do Branco IV

(Foto: celine)

Serpa, 1 de Agosto de 2020.
O Alentejo é (ainda) um território admiravelmente branco.


"Oh, os ramos do verão -

onde as cigarras
ou a cal

queimam
lentamente o coração."

(Eugénio de Andrade, "Acorde Perfeito" in Ostinato Rigore)


 


Sob o Signo do Branco III

(Foto: celine)

(No dia 5 de Setembro de 2019, a cidade de Aveiro acordou sob um céu fulvo, salpicada por uma morrinha de cinzas -rescaldo dos fogos intensos que lavraram na zona florestal de Macinhata do Vouga.)


"Oh anda ver
uma bola de neve
a arder"

Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho)

 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Sob o Signo do Branco II


(Foto: celine)

"A noite quebra as lanças uma a uma
na brancura dos muros e da espuma.

O dia apaixonadamente branco
cai ferido por um dardo no flanco."

(Eugénio de Andrade, "Mitologia" in Ostinato Rigore)

 

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Sob o Signo do Branco I


(Foto: celine)

"vento branco de outono -
será que parte com ele
o perfume da última flor?"

(Matsuo Bashô, O Eremita Viajante)



 

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Uma bola colorida

(Costa Vicentina - Portugal
Foto: celine)

"O Manel tinha uma bola
Mas por falta de atenção
Lá deixou ele ir a bola
Presa nos dentes do cão

Olha a bola Manel
Olha a bola Manel
Foi-se embora, fugiu (...)"

(Canção infantil, letra e música de José Barata Moura)


Uma bola de plástico colorida veio a rolar na areia da praia, impelida pela brisa quente do final de tarde.

Parou junto de um chapéu de sol, também ele colorido, de uma família com uma criança.

Como ninguém lhe prestou atenção, a bola recomeçou a rolar, pela areia fora, e parou junto de um segundo chapéu de sol, de um grupo de amigos mas sem qualquer criança.

Nenhum indivíduo do grupo reparou, igualmente, na bola, e lá tornou ela a rolar, desta feita, em direcção ao mar.

Nesse instante, a criança do primeiro chapéu de sol reparou na bola colorida e correu atrás dela. Apanhou-a e veio a brincar com ela até à areia seca.

Criança e bola adoptaram-se, mutuamente. 

Talvez a bola venha a ser uma bola feliz entre as mãos daquela criança...


"Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança."

(Excerto do poema "Pedra Filosofal", de António Gedeão)

 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Dias felizes

(Praia das Furnas - Vila Nova de Mil Fontes
Foto: celine)

"É isso! Tão poucas coisas a dizer, tão poucas coisas a fazer, e o medo, certos dias, tão forte, de chegar ao fim horas antes de a campainha tocar para dormir, e pronto, nada mais a dizer, nada mais a fazer. Que os dias passam, e não voltam, toca para dormir e nada ou quase nada se disse, nada ou quase nada se fez."

(excerto de Dias Felizes, de Samuel Beckett)

terça-feira, 23 de junho de 2020

Frágil

(Islas Cíes, Galiza-Espanha - 2016
Foto:celine)


"Todos os dias digo, sussurrando,
mantém o equilíbrio. Tudo espreita,
tudo assusta, a vida inteira prende-te
de um frágil fio e de uma sorte injusta.
A tua vida não pode muito.
Não percas o pé. Mantém o equilíbrio."

(Amalia Bautista in Coração Desabitado,
apud Margarida Baptista,
blog "Imagens com letras dentro")


segunda-feira, 22 de junho de 2020

Crepúsculo

(Parque Natural de Noudar
Foto:celine)

"Hemos perdido aun este crepúsculo.
Nadie nos vió esta tarde con las manos unidas
mientras la noche azul caía sobre el mundo.

He visto desde mi ventana
la fiesta del poniente en los cerros lejanos.

A veces como una moneda
se encendía un pedazo de sol, entre mis manos.

Yo te recordaba en el alma apretada
de esa tristeza que tú me conoces.

Entonces dónde estabas?
Entre qué gentes?
Diciendo qué palabras?
Por qué se me vendrá todo el amor de golpe
cuando me siento triste, y te siento lejana?

Cayó el libro que siempre se toma en el crepúsculo,
y como un perro herido rodó a mis pies mi capa.

Siempre, siempre te alejas en las tardes
hacia donde el crepúsculo corre borrando estatuas."

(Pablo Neruda in Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada)

terça-feira, 2 de junho de 2020

Contra o racismo!

CONTRA O RACISMO!

(Foto analógica: celine
Senegal, 2002)

"Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar, 
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olheia-a de um lado,
dou outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio."

(António Gedeão in Poesias Completas [1956-1967])

sexta-feira, 22 de maio de 2020

A sombra do silêncio

(Foto: celine - 26.03.2018)


"A Árvore do Silêncio

Se a nossa voz crescesse, onde era a árvore?
Em que pontas, a corola do silêncio?
Coração já cansado, és a raiz:
Uma ave te passe a outro país.

Coisas de terra são palavra:
Semeia o que calou.
Não faz sentido quem lavra
Se o não colhe do que amou.

Assim, sílaba e folha, porque não
Num só ramo levá-las
Com a graça e o redondo de uma mão?

(Tu não te calas? Tu não te calas?)"

(Vitorino Nemésio in Antologia Poética)

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Hereditariedade

(Foto:celine)

Este não é o teu perfil.
É um perfil que não tem o teu adn.
Simplesmente, não é teu.

É meu.

O perfil, subtilmente desenhado em todos aqueles traços, é só meu.

O adn, das sombras e dos contrastes, só a mim pertence.
Aquelas fotografias são já história.
E essa história não é a tua.

(Mas não tem de, forçosamente, ser a minha...)

terça-feira, 5 de maio de 2020

De branco

(Foto: celine)

"Desce em folhedos tenros a colina:
- Em glaucos, frouxos tons adormecidos,
Que saram, frescos, meus olhos ardidos,
Nos quais a chama do furor declina...

Oh vem de branco, - do imo da folhagem|
Os ramos, leve, a tua mão aparte.
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,
Reflectir-te virgem a serena imagem.

De silva doida uma haste esquiva
Quão delicada te osculou num dedo
Com um aljôfar cor de rosa viva!...

Ligeira a saia... Doce brisa impele-a...
Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo...
Alma de sylfo, carne de camélia..."

(Camilo Pessanha in Clepsydra) 

Língua portuguesa

(Escultura em bronze "Ao Emigrante Português", de Dorita Castel-Branco, em Santa Apolónia-Lisboa.
Foto: celine)

Dia Mundial da Língua Portuguesa

"(...)
Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou o instinto como uma grande emoção política. (...)
Minha pátria é a língua portuguesa. (...)"

(Bernardo Soares in Livro do Desassossego)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Os livros

(Foto: celine)

Dia Mundial do Livro

"Tudo, mas tudo o que o Homem criou, para o livro conflui e nele se concentra. Nele se exprime o próprio ser do Homem. (...) O livro ergue-se diante de nós como um arquétipo, ou uma forma primitiva. Nele se concentra e resume a existência universal."

(Romano Guardini, Elogio do Livro)

*

"Quem não se lembra como eu dessas leituras feitas em tempo de férias, que íamos esconder atrás umas das outras em todas as horas do dia que fossem suficientemente calmas e suficientemente invioláveis para poderem dar-lhes asilo."

(Marcel Proust, O Prazer da Leitura)

*

"Um livro é uma coisa entre as coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente Universo, até que encontra o seu leitor, o homem destinado aos seus símbolos. Acontece então a emoção singular chamada beleza, esse mistério belo que nem a psicologia nem a retórica decifram."

(Jorge Luís Borges, Biblioteca Pessoal) 

*

"Na verdade acontece muitas vezes ir-se à biblioteca porque se quer um livro cujo título se conhece, mas a principal função da biblioteca, pelo menos a função da biblioteca da minha casa ou da de qualquer amigo  que possamos ir visitar, é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importantes para nós."

(Umberto Eco, A Biblioteca)

*

"Ao erguer pilha atrás de pilha de volumes conhecidos (reconheço alguns pela cor, outras pelo formato, muitos por um pormenor nas capas, cujos títulos tento ler ao contrário ou de um ângulo inadequado), pergunto-me, como de todas as outras vezes, por que motivo guardo tantos livros que sei que não voltarei a ler. (...) Mas sei que a principal razão por que continuo a acumular  este espólio que não pára de crescer é uma espécie de avidez voluptuosa. (...) Deleita-me saber que estou rodeado  por uma espécie de inventário da minha vida, com prenúncios do futuro."

(Alberto Manguel, Uma História da Leitura)  


*.*



sexta-feira, 17 de abril de 2020

Pérola d'água

(Foto: celine)

"UM DIA NÃO MUITO LONGE
NÃO MUITO PERTO

Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu  que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?"

(Ruy Belo, Homem de Palavra[s])


quinta-feira, 16 de abril de 2020

Fora da Caixa


 Fora da caixa


(Miradouro São Pedro de Alcântara - Lisboa
Foto: celine)

"O conjunto dos meus sintomas consiste na atracção que sinto por tudo o que está estragado e rachado, e por tudo o que é imperfeito e defeituoso. Tenho particular interesse por formas imperfeitas, erros na criação, becos sem saída. Por tudo aquilo que deveria desenvolver-se e que, por qualquer motivo, ficou atrofiado ou, pelo contrário, excedeu as medidas previstas. Por tudo o que escapa à norma, que é demasiado pequeno ou demasiado grande, exuberante ou incompleto, monstruoso e repugnante. Formas que não obedecem à simetria, que se multiplicam, que rebentam pelas costuras, que desabrocham por todos os lados ou que, pelo contrário, reduzem a diversidade à uniformidade. (...) Nutro a convicção, constante e cansativa, de que é precisamente no campo das anomalias que o verdadeiro ser vem à superfície e revela a sua natureza."

(Excertos de "Viagens", de Olga Tokarczik)

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Jogo de Sombras II

Jogos de Sombras

"Não é que tenhamos uma reserva a priori relativamente a tudo o que brilha, mas, a um brilho superficial e gelado, preferimos sempre os reflexos profundos, um pouco velados (...) profundos e espessos como um pântano, um encanto novo e bem diferente."

(Foto: celine)


"Alguns poderão dizer que a beleza enganadora criada pela penumbra não é a beleza autêntica. Todavia, e tal como o dizia atrás, nós os Orientais criamos beleza ao fazermos nascer sombras em locais por si mesmo insignificantes. (...) [C]reio que o belo não é uma substância em si, mas apenas um desenho de sombras, um jogo de claro-escuro produzido pela justaposição de diversas substâncias."

(Foto: celine)

(Excertos de texto extraídos de "Elogio da Sombra, de Junichiro Tanizaki)

terça-feira, 14 de abril de 2020

Escuridão vs. Luz

Os livros, que ficaram isolados na falta de tempo
do relógio atrasado dos nossos dias...

(Foto:celine)


Abrem as suas folhas brancas, que se enchem de luz,
nesta primavera do nosso confinamento.

(Foto: celine)

sexta-feira, 27 de março de 2020

Jogo de Sombras I

(Foto: celine)

Eu não tenho estantes altas, saturadas de livros, a forrar as paredes da sala.
Mas, suspeito que, no tecto da minha sala nasçam flores...

Tempo lento

(Cais das Colunas - Lisboa
Foto:celine)

"Mas, enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Para que estes meus versos vossos sejam,
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado;
E costumai-vos já a ser invocado."

(Luís de Camões, Os Lusíadas, canto primeiro, estrofe 18).

Mãos II

(Jardim Gulbenkian - Lisboa
Foto: celine)


"MÃOS

Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender."

(Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética I).

terça-feira, 17 de março de 2020

Tatuagem

(Jardim Gulbenkian - Lisboa
Foto: celine)


"........................................................................….
E vejo-te nesta linha de luz em que se liberta
uma intimidade de respiração, com a realidade do teu rosto,
o desenho de pétala do verso que te envolve, e
o breve gesto da despedida em que o amor se demora."

(Excerto do poema "A imagem da flor", de Nuno Júdice)


E, pergunto eu:

Que código
é esse, inscrito no teu braço,
com que abraças
no incógnito?





domingo, 15 de março de 2020

Mãos I

(Numa porta, algures em Lisboa…
Foto: celine)
 
 
"...…...........................…
Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…"
  
(Excerto do poema "Quase", de Mário de Sá-Carneiro)

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Gaivotas

(Foto:celine)


"Falo de ti às pedras das estradas, 
E ao sol que é loiro como o teu olhar, 
Falo ao rio, que desdobra a faiscar, 
Vestidos de Princesas e de Fadas.

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço, 
Sobre os brocados fúlgidos da glória, 
São astros que me tombam do regaço!"

(Florbela Espanca, Charneca em Flor, canto VI)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Envelhecer

(Calçada de São Francisco, Lisboa
Foto: celine)

Numa estrada seca,
linhas oblíquas
confundem o olhar
numa miragem de azul.

Envelheci,
de tanto fechar os olhos
noutras estradas sem saída;
em fugas sem sentido...



terça-feira, 14 de janeiro de 2020

De manhã



(Foto: celine)

Acorda, manhã!
Sacode a geada dos finos cabelos das árvores.
Esconde essa lua teimosa nos luminosos raios de sol.
E, em robe-de-chambre, desce a avenida, mordiscando o trânsito buliçoso.
Bom dia, gaivota.



quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Sonho...

(Foto e edição: celine)

Sonho... Sonho...
Sonho pela mão da tua escrita,
Poeta.
Sonho pela poesia
que se refugia nesse teu peito,
oferecido ao abraço
das ondas do mar;
oferecido ao beijo
do sal na espuma.
Louca eu!... Sonho,
temperar-te o chá,
em que nas folhas abertas
tu verterás o teu verso.
Vai, Poeta, vai versar,
e extasia-me!
Nas estantes do meu prazer,
derrama-me o leite
da tua poesia.