domingo, 17 de janeiro de 2016

Uma memória da Casa de Ervelho

 
 Em Setembro, por altura das festas de S. Miguel, o patrono das colheitas, faziam-se as vindimas.

            Umas duas semanas antes, era a azáfama de tirar as pipas para fora da adega e lavá-las, bem como aos cestos e aos caixotes de carrego.

            Seguia-se a contratação dos jornaleiros, homens e mulheres; eles para subirem em escadotes para as parreiras altas e, depois também, para esmagarem as uvas; elas para vindimarem as vinhas baixas e equilibrarem, nos seus frágeis pescoços e sobre uma rodilha, os caixotes atulhados de uvas para a adega.

            Dentro da própria adega, lavavam-se os tonéis, em que depois se montaria o esmagador de uvas e a prensa do mosto.

            O processo era rudimentar, mas, ainda assim, o vinho verde branco da Casa de Ervelho era apreciado em algumas freguesias do concelho – talvez fosse das leiras com casta Alvarinho

            Vindimadas as uvas para os cestos, estes eram despejados para os caixotes que, depois, as mulheres carregavam equilibrados nas suas cabeças – que, penosamente, dançavam para a esquerda e para a direita, sob o imenso peso daqueles, fazendo lembrar os meneios das cabeças indianas – e seguiam em direcção à adega onde estavam os tonéis e o esmagador.

            Chegadas à adega, entregavam os caixotes ao homem que se encontrasse empoleirado no escadote, encostado ao tonel, que os despejava, gradualmente, dentro do esmagador, movendo, quase em simultâneo, a manivela dos cilindros que esmagavam as uvas, transformando-as em mosto.

……………………………………………………………………………………………

Tia Maria do Zé Magalhães entrou na adega, carregando na cabeça mais um caixote de uvas. Ficou espantada por não ver o seu Zé empoleirado no escadote, de serviço ao esmagador; mas observando atentamente o tonel, logo adivinhou a desgraça e, sem mais, largou a correr em direcção ao eido, onde o Avô vindimava.

            Defronte do Avô, ofegante pela corrida, lá conseguiu articular:

            - Aiii, Senhor Diogo… Aiii, o meu Zé… Ai, Senhor Diogo!...

            - O que foi, mulher?! Que tem o Zé?!

            - Aiii… O meu Zé… caiu na pipa!

            E lá foram todos, apressadamente, para a adega, a acudir ao Tio Zé Magalhães.

            O Avô chamou: - Zé? Zé?... Então, ouviu-se uma restolhada, vinda do interior do tonel e uma voz roufenha e irada gritou:

            - Foda-se! Caralho, Diogo, tira-me daqui!

            Um jornaleiro subiu ao escadote, enquanto outro, bem mais alto, empoleirou-se na trave que sustentava o tonel, e lá conseguiram ambos agarrar as pernas do homem tombado dentro do tonel e içarem-no para fora.

            O Tio Zé Magalhães, pequeno e tolhido, com os olhos esbugalhados, respirava com pressa de absorver todo o ar que pudesse – e escorria e fedia a mosto!...

            Não fora dessa!

Que o Tio Zé Magalhães, ainda, haveria de provar aquele vinho verde tinto nos merendeiros das colheitas seguintes…

            Aquele mesmo mosto que, durante três dias, haveria de repousar dentro das pipas grandes a fermentar. Uma vez de manhã e outra à noite, deitavam o vinho abaixo – com uma gadanha pequena empurrava-se o mosto na borda da pipa, forçando a volta para cima do mosto que se depositava no fundo dela.

            Por cima do espaço em que se encontravam essas pipas grandes, ficava o meu quarto. E as minhas manhãs eram, então, acordadas na envolvência daquele bouquet de mosto!

            Findos os dias da fermentação, o mosto era colocado na prensa, formada por tábuas de madeira estreitas.

Durante uma semana prensava-se e recolhia-se o vinho escorrido para a pia de pedra, assente ao nível do chão – essa pia que havia sido, dias antes, esfregada simplesmente com água e escova. Higienizada!? Sei lá!... Mas o vinho era afamado.

Esse líquido vermelho escuro - tão tinto que manchava a boca de vermelho! - era transportado nos cabaços para as pipas de armazenamento, que repousavam na outra adega fronteira.

            O mosto prensado era, depois, colocado dentro do alambique para se preparar a fabricação da aguardente, no cabanal. Mas isso, era lá para a primeira semana de Outubro, com as primeiras chuvas e a queda dos ouriços dos castanheiros.

            Incumbia-se o Feliciano dessa tarefa. Um homem novo, muito loiro e com olhos muito azuis, que desentaramelava a língua a uma velocidade impressionante, mas sempre com o coração quente e uma boa disposição contagiante!

            E tinha boa mão para fazer aquela aguardente bagaceira.

Sentava-se num banquinho baixo, frente ao alambique, aproveitando o fogo que o aquecia para assar algumas castanhas que, habilidosamente, retirara dos ouriços, e passava-mas, já menos quentes.

            Quando o líquido escorresse pelo tubo do tanque de água, assim formado pelo vapor do mosto saído do alambique, e apurado num fio de serapilheira cuidadosamente colocado na boca do tubo, a aguardente estava pronta e faltava só recolher todo esse líquido para os pipos.

            - Tininha, põe ali no fiozinho o teu dedo mindinho e prova… – disse-me o Feliciano, numa dessas ocasiões.

            Eu assim fiz; e depois de chupar o dedo mindinho, dei um estalido com a língua no céu-da-boca e… pedi mais.

            Tinha 5 anos de idade a acabava de provar a minha “primeira” aguardente!
 
(Valença, Setembro de 2008)
 
_____

Sem comentários:

Enviar um comentário