De que são feitas as memórias?
Passeio-me ao longo da praia, numa tarde farrusca.
Olho mais além, para o imenso ermo galego, e torno à velha questão:
quem sou eu?...
Desde que sou presente,
já passou meio século
neste lado do universo.
Depois de tantos rodados,
para norte e de volta para sul,
na prazerosa N13, agora veloz A1!
Olho para trás,
nessa outra estrada da vida…
o que aconteceu, desde a partida?...
Passeio-me ao longo da praia, descobrindo, na branca espuma, o desfio da água turva das memórias.
Memórias…
… de enrolar-me pequenina no colo do pai,
a sentir a voz sumir-se-lhe
sob o peso das pálpebras teimosas…
…das castanhas a estalarem nas brasas
do alambique de aguardente,
saltitantes nas mãozinhas de petiza…
… do equilibrismo do fim da infância,
balouçando na escada de madeira podre
a arrancar bagos de moscatel e de alvarinho…
… dos banhos a espertar a adolescência,
na cascata entonada do tanque,
na hora do sol dourar a parreira…
…de me agachar, desde sempre,
sobre a terra húmida,
a sentir-lhe o cheiro da chuva…
… do fumeiro nas narinas,
a crepitar nas queimadas
das manhãs brumosas de invernia…
… do costurar do vento,
nas agulhas afiadas dos pinheiros,
o véu da nortada a desvelar a chuva…
…de mergulhar a alma
na água ferrosa do pote negro,
vertida na alva selha dos banhos…
... das francas gargalhadas maternas,
amassando a alegria de bolos e merendas,
a envolver-nos no coração de mel...
… das rosas abertas,
a perlarem de orvalho
o acordar de cristalinas manhãs…
… da primeira (des)ilusão de amor,
assobiada nos bicos dos pés,
sob uma cepa de vinho verde…
... da fresca alma minhota da mãe
chacoteando as compras matinadas,
a aliviar a carga nas costas galegas...
… do pinheirinho de Natal,
aos ombros do pai, caminhando ao lado
o arrastar do machado na volta dos pinhais…
Passeio-me ao longo da praia;
dos salpicos salinos das ondas
outras pérolas salgadas
saltam deste rosário de contas.
De que são feitas as memórias, afinal?
Talvez de longos passeios à
beira mar…