«O povo é uma matéria inflamável», deixa da personagem Moreau no filme Les Adieux à La Reine, de Benoît Jacquot, que passou recentemente na programação da RTP2, dedicada ao cinema francês.
Trata-se de um drama, historicamente situado no alvorecer da Revolução Francesa, com a Tomada da Bastilha, sob o estandarte «liberté, égalité, fraternité», movimento pretendidamente determinante da evolução progressista da sociedade que desperta o conflito da ética do Estado face ao embrião da ideia de liberdade dos cidadãos.
Curiosamente, a exibição desse filme foi antecedida do documentário Fronteiras Desvanecidas, realizado pela imigrante jugoslava no Chipre, Iva Radivojevic, em resultado da sua investigação sobre os efeitos da imigração na identidade nacional, no contexto do êxodo migratório dos que buscam asilo no Chipre.
A França foi, décadas atrás, um dos destinos alvo da imigração, e até da migração de povos, destacando-se os oriundos do Magrebe (em especial, Argélia, Tunísia e Marrocos), assistindo, então, ao surgimento dos bidonvilles de Paris, e, hoje, ao bulício de ideais nacionalistas, de extrema-direita… tão longínquos do estribilho revolucionário de 1789!
O Mundo assiste, agora, a uma hecatombe migratória de refugiados políticos ou, simplesmente, de gente aflita que foge da insegurança, da fome, da pobreza, do fanatismo, da guerra, navegando à deriva do seu sofrimento, acabando, muitos deles, a naufragar corpos e sonhos no mar - tão belo e tão terrível! - sem nunca sucederem na Tomada da Europa.
Sentimentos de impotência e de desespero são pavios curtos que reciprocamente inflamam os ânimos de refugiados e de nacionais, avivando as chamas da fúria de uns e as da segregação dos outros – e os povos transformam-se, assim, em matéria inflamável.
Gente que foge do fogo da guerra para acabar num paiol de frustração!
No discurso dos direitos, alicerça-se o Direito Internacional num enunciado de direitos humanos, crescentemente diversificados e específicos; e sobre estes hão-de assentar os direitos fundamentais, de consagração constitucional, de cada país.
O princípio democrático assenta no postulado que o HOMEM é princípio e fim do Estado e da sociedade, que lhe serve de justificação existencial e, por isso, deverá constituir um valor axiomático merecedor de cuidada tutela jurídica.
Historicamente, os valores essenciais à condição humana têm sido designados com diferentes classificações, sem que possa concluir-se pela exacta correspondência a diferentes categorias, como sejam Direitos do Homem ou Direitos Humanos, Direitos do Homem e do Cidadão, Direitos, Liberdades e Garantias…
Mas, independentemente da concreta categorização, todas as designações convergem que a dignidade da pessoa humana é um valor fundamental do ordenamento jurídico de qualquer Estado.
Nas palavras de Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu, «a crise migratória é um desafio em todos os sentidos da palavra, incluindo o financeiro», orientando-se a política orçamental e financeira dos Estados pela prioridade da definição da política de asilo, (cfr. Diário Económico, edição de 05/10/2015).
A Carta Internacional dos Direitos Humanos – erigida a partir da Declaração Universal - enfatiza a universalidade do direito que assiste a toda a PESSOA; a protecção que é devida pela dignidade da PESSOA, com um sentido e alcance que ultrapassa os direitos dos cidadãos.
No que respeita especificamente aos refugiados, a denominada Convenção de Genebra prescreve o princípio do non-refoulement, como a proibição de qualquer um dos Estados Contratantes de expulsar e de repelir um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas, (cfr. artigo 33º, nº 1).
Este princípio do non-refoulement, originariamente instituído no Direito Internacional Consuetudinário, adquiriu, com a Convenção, natureza de norma jus cogens – ou seja, trata-se de uma norma imperativa.
Perante esta massificação migratória, proveniente de África e dos países islâmicos, espera-se, reversamente, que a União Europeia pressione o presidente turco, Recep Erdogan, para que tome medidas impeditivas da entrada de novos migrantes na Europa através da Turquia, (cfr. Diário Económico, edição de 05/10/2015).
Consabidamente, a extensão geográfica global e a multiculturalidade são barreiras muito dificilmente transponíveis para se entrar no campo da consensualidade para um convívio pacífico da Humanidade.
Estas correntes migratórias de gente põem, assim, à prova os limites da globalização, no que, de algum modo, pode comprometer a essencialidade da dignidade humana - e que tem como sujeito simplesmente a PESSOA - em que assentam todas as valorações normativas dos direitos humanos.
Os acontecimentos recentes aí estão a demonstrar, inexoravelmente, as dificuldades.
Na exposição INFINISTERRA, que decorreu, este ano, no Museu do Oriente, percebeu-se que cada país tem uma identidade peculiar e os fenómenos migratórios têm o inevitável efeito da multiculturalidade (linguística, religiosa, cultural, social), gerando uma realidade complexa – e nesse fenómeno ocorre uma interpenetração das características estrangeiras e das nativas.
Pode, então, surpreender-nos a constatação que «[a] riqueza humana relembra-nos a fragilidade do conceito fronteira», (INFINISTERRA).
Nos 100 anos que, agora, passam sobre a publicação de Metamorfose, de Franz Kafka – também ele, um marginalizado pela língua e pela religião – assistimos, na Velha Europa, nestes novos tempos, a uma metamorfose da identidade nacional numa identidade cosmopolita, promovendo a biodiversidade como um valor em si mesmo, (tema em destaque no Pavilhão da ONU, na EXPO Milano 2015).
A Organização das Nações Unidas, nas declarações de direitos que orienta, incentiva a preservação da biodiversidade como meio de promoção do equilíbrio e harmonia dos povos, atento o binómio diferença-desigualdade, assente que «nessun luogo senza un genio» - partindo do conhecimento do lugar do HOMEM no Mundo (genius loci), talvez, se alcance a harmonia e a paz na convivência da Humanidade, (ibidem).
O acento tónico do discurso dos direitos tende a deslocar-se, enfaticamente, para o direito à diferença.
Até que ponto o multiculturalismo poderá constituir um modo de estruturar a emergente diversidade social?
E nessa (re)estruturação até onde deverá a Europa tolerar a diversidade para, ainda, conseguir concretizar a unidade europeia?
A solidariedade no género humano explica a solidariedade comunitária, entre as pessoas do mesmo grupo e entre os diferentes grupos.
O princípio da igualdade, saído dos ideais da Revolução Francesa – na época, com a finalidade de combater os privilégios de determinadas classes sociais – tendo gerado, durante o Estado Liberal como igualdade perante a lei, desigualdades substanciais e económicas, vem a ser desenvolvido no Estado Social como igualdade na lei, diferenciando-se a discriminação positiva e negativa e especificando-se uma igualdade de oportunidades.
O princípio da igualdade, aplicado no âmbito dos direitos humanos, na preservação da dignidade humana, erige-se, também, como norma jus cogens.
A multiculturalidade reclama características específicas para o exercício de direitos, orientando-se para uma discriminação positiva do princípio da igualdade, sem que, no entanto, se desvie da eventual correcção de situações de necessidade, no sentido de estabelecer uma base de solidariedade dentro da mesma comunidade política – precisamente, em nome da preservação do essencial da dignidade humana.
Os fenómenos de disseminação dos povos repartem-se entre a homogeneização e a miscigenação, afirmando-se, às vezes radicalmente, o direito à diferença e, paradoxalmente, pretendendo inspirar a crença que somos todos cidadãos do mundo (!).
Em Setembro passado, a maioria dos países que integram a União Europeia aprovou um programa de relocalização em que, cada um dos Estados-membros intervenientes, aceita acolher uma quota de refugiados, na medida das suas possibilidades, decisão política que teve a chancela de Angela Merkel, tendo sido a Alemanha o primeiro país europeu a abrir as portas a essa leva migratória.
Estes recentes movimentos migratórios, ocorrendo a uma velocidade nunca antes conhecida, pressionam os decisores políticos para acções, igualmente, rápidas que podem acabar perturbando os conceitos de alteridade e etnocentrismo, direitos das minorias e direito à diferença.
É no diálogo de culturas, em que se dá voz à multiplicidade da condição humana – a «alma própria de um povo», no seu direito à auto-determinação, do filósofo alemão Gottfried von Herder - que ganham protagonismo valores de liberdade e de paz na busca do equilíbrio no estabelecimento de uma ordem normativa e política (Henry Kissinger, A Ordem Mundial).
A União Europeia já se afadiga na instituição de um «pacto de cidadania», que relacione o indivíduo ao Estado e à sua comunidade, sem interferir com as crenças pessoais, valores ou outros aspectos de identidade pessoal.
Como vai, agora, alinhavar este acolhimento de gente tão heterogénea, sem tradição cultural europeia ou sequer ocidental?
Como resolver a (inevitável) interculturalidade, na igualdade e na diferença ditadas pela divisão dessa gente, estrangeira e nacional, por identidades étnicas, religiosas, linguísticas e ideológicas diversas?
Com tantas visões do Mundo a fervilharem no caldeirão das necessidades – mais casas, mais escolas, mais garantias de educação e mais saúde… - que prioridades estabelecer, como equilibrar na discriminação positiva as diferentes oportunidades?
O acolhimento de refugiados na medida das possibilidades do Estado acolhedor põe em jogo uma ponderação que evoca o princípio da proporcionalidade – definindo-se em concreto um conjunto de alternativas que pressupõem uma relação meio-fim que, por sua vez, permita aferir a necessidade, adequação e razoabilidade dessas alternativas – mas, igualmente, o princípio da igualdade, em especial não privilegiando ou privando algum refugiado em função de qualquer direito em função, designadamente, da raça, língua, território de origem, religião ou convicções políticas, tendo como denominador comum exigível a dignidade da pessoa humana.
Num momento do documentário Fronteiras Desvanecidas, um cipriota coloca uma interrogação que nos impele à reflexão: como podem países geograficamente pequenos, sujeitos passivos de operações de resgate financeiro, acolher este êxodo de refugiados? Como abrigá-los? Como alimentá-los? Que empregos oferecer-lhes?
A resposta às questões colocadas – Portugal é um dos países a acolher uma quota-parte de refugiados – encontra-se, ainda, na argamassa para a concretização das ideias políticas.
Citando Klemens von Metternich (estadista do Império Austríaco): «onde tudo vacila, é prioritário que algo, não importa o quê, permaneça firme para que os perdidos possam encontrar um vínculo e os extraviados um refúgio».
Bastará como trave-mestra do confronto com esta avalancha migratória o sabermos alguma coisa da essencialidade da dignidade humana?
(Lisboa, 9 de Outubro de 2015)