Ode de uma funcionária
(a propósito da Sonatine Bureaucratique, de Erik Satie)
Chegou soberba, imponente,
distribuindo sorrisos,
e sempre ajeitando um "bom dia, como está?",
pra toda a gente.
Chamou a secretária e ditou:
"Registe. Notifique. Telefone. Faxe."
Chamou a funcionária e ordenou:
"Estude. Pesquise. Execute. Faça."
Passa o tempo. O trabalho prensa.
Os objectivos ameaçando ruína iminente...
A Directora apoquenta-se:
"Ai que aflição! Assim não me safo!..."
Chama a funcionária e grita:
"Estude. Pesquise. Cumpra. Trabalhe."
"Mas, Senhora Directora,
aqui não deve haver alimárias,
porque devo ser eu a única que marralha!?",
ofende-se a funcionária.
"Pois, 'tá claro!" - responde a Directora.
"Mas não se pode contar com a maralha,
que anda tudo jogando à malha,
por esse corredor fora!"
E continua a Directora:
"A C... não atalha;
A F... sempre me falha;
A M... só atrapalha.
Se não fores tu, não há quem me valha!"
A funcionária, renitente,
vai ouvindo a Directora insistente:
"No trabalho és tu...
competente,
paciente,
persistente!..."
E a funcionária lá se convence!
Passa o tempo. Eis o final do ano!
Para tudo! Pra fazer o balanço.
Pede a Directora as fichas do desempenho.
Vê, verifica, compara, classifica.
"Pode lá ser! Que desequilíbrio! Que desdita!
Assim não avanço!"
Chama a funcionária.
E capciosa, explica:
"Vi os números, fiz as contas, baralhei os dados...
No fim, sempre o mesmo resultado:
tu, 'tás num nível alto; certos outros um bocado abaixo.
Pensei num modo que mitigasse
este nefasto efeito, talvez, esquecermos
que certos trabalhos em termos,
és tu que os trazes feitos."
(Lisboa, 2010)
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